Biografia

José da Felicidade Alves nasceu a 11 de março de 1925, no Vale da Quinta, freguesia de Salir de Matos (Caldas da Rainha), sendo os seus pais Joaquim Alves e Maria da Felicidade. Poucos anos depois, veio a nascer Ilda, a sua irmã.

São muito escassas as informações para descrever a sua infância, mas há indícios de que muito cedo manifestou o desejo de vir a ser padre.

A formação obtida nos Seminários do Patriarcado, desde os 11 anos de idade – que contou com o apoio de Lídia Cabeça, a madrinha sempre compreensiva, mesmo nos momentos mais difíceis – foi moldando, ano após ano, uma personalidade atenta ao fascínio dos ensinamentos da Igreja.

Ordenado sacerdote a 24 de junho de 1948, foi de imediato nomeado Professor de Grego e de Matemática no Seminário de Almada, e um ano depois, convidado a lecionar, no Seminário dos Olivais, Teologia Fundamental e Teologia Dogmática, Patrística e História Eclesiástica. Dotado de uma inteligência brilhante e de uma força de carácter inconfundível, contribuiu, ao longo de oito anos, para a formação teológica de mais de uma centena de padres, um terço do total de sacerdotes que à data pertenciam ao Patriarcado de Lisboa.

Em período de férias do verão, ao longo de vários anos, frequentou seminários intensivos nas seguintes áreas: Teologia (Abadia de S. André, Bruges, 1951); Eclesiologia (Lourdes, 1953); Pastoral Litúrgica (Versailles, 1949, 1951, 1953, 1955, 1959); Organização e Pastoral Paroquiais (Santa Suzana, Bruxelas, 1950); Pastoral Geral (Madrid, Barcelona, Paris, Nantes, Milão); Organização Paroquial - F.A.C. (Itália: Velate di Varese; Premeno-Intra - Lago Maior); Curso de Formação “Para um Mundo Melhor” (Segóvia, Fátima, Porto e Lisboa); Instituto Theilhard de Chardin, Paris, 1965; Temas Theilhardianos (Vezelay, 1966); Instituto Católico de Paris, 1967: exame de licenciatura em Teologia; Instituto Ecuménico de Paris, 1967-68.

Em 1956 foi nomeado pároco de Santa Maria de Belém (Jerónimos) e de São Francisco Xavier. Nessas paróquias, desenvolveu uma ação pastoral inovadora, em sintonia com o aggiornamento lançado por João XXIII e sistematizado no Concílio Vaticano II. O nível pedagógico e pastoral das suas homilias, a qualidade dos cursos de formação e o vigor dos movimentos de leigos, foram suficientemente determinantes para levar o Patriarca de Lisboa a reconhecer, em 30 de maio de 1968, “a sua notável obra pastoral, primeiramente no Seminário dos Olivais, ultimamente nas paróquias de Santa Maria de Belém e de São Francisco Xavier. Aqui de facto deu incremento ao culto e à renovação litúrgica; lançou fecundos movimentos de apostolado; formou e dinamizou, no serviço de Deus e das almas, muitos e dedicados leigos. A Diocese não esquece, também, a sua contribuição para a reestruturação pastoral” (Testemunho Aberto. Lisboa: Multinova, 1999, p. 145).

Não obstante, cinco meses depois, a 2 de novembro de 1968, o Cardeal Cerejeira decretou o seu afastamento compulsivo da paróquia de Belém e a suspensão “a divinis”, contrariando o parecer da Comissão que o mesmo Cardeal Cerejeira nomeara expressamente para “obter elementos de informação”. O pretexto para tal decisão foi a divulgação do documento de 19 de abril de 1968, “Exposição feita ao Conselho Paroquial de Belém”, onde equacionou, com extraordinária lucidez, os grandes problemas que se colocavam à Igreja Católica, em Portugal, denunciando a censura, a polícia política, a prisão sem culpa formada, a tortura física e moral, o totalitarismo do medo e defendendo o direito de reunião, o direito à informação e à plena autonomia dos povos colonizados. O mesmo Patriarca, em carta dirigida ao Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, em 8.10.68. garantiria que, após a remoção “dele (Padre Felicidade) nada restará e tenho pressa, como V.Exª, de acabar com isto” (José Freire Antunes – Cartas Particulares a Marcelo Caetano, 1985, p. 322-323).

As suas posições, desenvolvidas e largamente difundidas através dos Cadernos GEDOC motivaram, dois anos mais tarde – de 19 a 29 de maio de 1970 – a sua prisão pela PIDE. Foi julgado e absolvido pelo Tribunal Plenário em 6 de novembro de 1973, juntamente com Nuno Teotónio Pereira, Abílio Tavares Cardoso e Manuel Mendes Mourão.

Os documentos relativos ao processo eclesiástico, incluindo, tanto a sua defesa, como a totalidade das acusações formuladas, encontram-se reunidos no volume acima referido, Testemunho Aberto – O caso do Padre Felicidade. Lisboa: Multinova, 1999. Apesar de se tratar de publicação póstuma, a organização dos documentos e a maioria dos comentários são do punho do próprio Padre Felicidade.

O casamento civil que celebrou com Maria Elisete Nunes de Ascensão a 1 de agosto de 1970, na Conservatória do Registo Civil de Caldas da Rainha, seguido de celebração litúrgica presidida pelo Cónego Abílio Tavares Cardoso e convívio com largas dezenas de amigos na colina sobranceira a Vila Franca de Xira (Senhor da Boa Morte), forneceu ao Patriarca de Lisboa o pretexto suficiente para decretar a excomunhão, com efeitos imediatos. Em É Preciso Nascer de Novo – o livro que nessa altura publicou – justifica a sua opção pelo casamento civil.

Começou então a luta pela sobrevivência. Durante 30 anos, o P. Felicidade trabalhou incansavelmente. Nos empregos de recurso a que teve de sujeitar-se para garantir o sustento (Mármores do Condado, Cimbrex, Mundus Portuguesa, Alicerce-Construção Civil, Caixa de Previdência dos Serviços Médico-Sociais do Distrito de Lisboa, Anuário Comercial), tornava-se rapidamente trabalhador de primeira, como é unanimemente testemunhado nos respetivos meios de atividade.

Uma tal condição não o impediu de, em paralelo, desenvolver intensa atividade de pesquisa e de investigação, nas áreas da olissipografia, da história, da literatura e da teologia: Católicos e Política: de Humberto Delgado a Marcelo Caetano, 1969; Pessoas Livres – Antologia de documentos e alguns estudos sobre o estatuto dos padres, 1970; É Preciso Nascer de Novo – Testemunho pessoal, 1970; Jesus de Nazaré, 1995.

Foi também nos Livros Horizonte, onde desempenhou o lugar de Assessor literário do Director, Dr. Rogério de Moura, que elaborou e publicou uma série de estudos originais sobre O Mosteiro dos Jerónimos (3 vols.). Ali selecionou, redigiu introduções e anotou a coleção FRANCISCO DE HOLANDA (Da Pintura Antiga, 1984; Diálogos em Roma, 1984; Do Tirar polo Natural, 1984; Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, 1984; Da Ciência do Desenho, 1985; Introdução ao Estudo da Obra de Francisco de Holanda, 1986 e Álbum dos Desenhos das Antiqualhas, 1989).

O mesmo vigor revelou na organização e coordenação da coleção CIDADE DE LISBOA (Lisboa em 1551 – Sumário em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa, de Cristóvão Rodrigues de Oliveira, 1987; Descrição da Cidade de Lisboa [1554], de Damião de Góis, 1988; Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147. Carta de um cruzado inglês que participou nos acontecimentos, 1989; Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, de João Brandão de Buarcos, 1990; Do Sítio de Lisboa. Diálogos [1608], de Luís Mendes de Vasconcelos, 1990).

Deixou preparados para o prelo os seguintes estudos originais: O Sítio do Restelo e a sua Ermida Medieval de Santa Maria de Belém (*); O Mosteiro de S. Vicente de Fora (**); Os Chafarizes de Lisboa (*); e Peregrinação pelas Igrejas de Lisboa desde as origens até aos nossos dias (7 tomos) (***).

Eleito Académico em 1994 pela Academia Nacional de Belas Artes, foi condecorado por Mário Soares como resistente ao Estado Novo, em 10 de junho de 1994.

Em 1998, o novo Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, promoveu a sua reconciliação com a Igreja, apresentando oficialmente um pedido de perdão e presidindo ao seu casamento canónico, a 10 de junho de 1998, poucos meses antes da sua morte, que ocorreu a 14 de dezembro desse mesmo ano.

Espólio Literário

Constituído fundamentalmente por dois grandes lotes, o dos livros e revistas, e o Arquivo Pessoal (trabalhos escritos e correspondência). A doação dos livros e revistas (cerca de 1.800 títulos), de interesse maioritariamente eclesial (Teologia, Sagrada Escritura, Liturgia e Pastoral) acabou por ser decidida a favor da Biblioteca da Universidade Católica Portuguesa, por ser o destino mais acessível à consulta de investigadores de matérias religiosas. A relação completa desses livros pode ser consultada aqui.

O Arquivo Pessoal (constituído por 100 pastas de arquivo) foi doado à Fundação Mário Soares, em 2005. A descrição deste espólio e imagens dos documentos que o constituem estão acessíveis através da plataforma Casa Comum (acesso direto: http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_1183). O espólio doado compreende também um exemplar de cada uma das suas 22 obras, publicadas nos Livros Horizonte.

Encontramos ainda um trabalho de singular importância, intitulado “Roteiro da Produção Literária Portuguesa no Século XVI desde o Inicio da Utilização da Imprensa até à Dominação Filipina”, ao qual Felicidade Alves dedicou muito do seu tempo livre, ao longo de pelo menos 20 anos e que depois da obra fundadora de António Anselmo de 1926, constitui a mais recente e mais completa tentativa pública de reunir o legado literário português editado no século XVI. A extensa relação de cerca de 3.400 fichas está integralmente digitalizada e acessível na plataforma Casa Comum, da responsabilidade da Fundação Mário Soares (acesso direto aqui).

Herança da Memória

Homem de personalidade multifacetada e de forte carácter, amplamente revelados nos seus escritos e nas suas tomadas de posição, educador de sacerdotes, de crentes e de não crentes, a memória de José da Felicidade Alves reclama que o acervo documental, que nos deixou, testemunho da sua lucidez, coragem, solidariedade e desapego de si, seja preservado e divulgado.

O Padre Felicidade foi um homem de contrastes. Por isso saiu do comum, teve um percurso singular, por vezes desconcertante. De uma enorme lucidez e frontalidade, dotado de temperamento fogoso e apaixonado, praticou a fraternidade, que tanto foi ternura e despojamento em favor dos fracos, como censura implacável, violenta, perante a hipocrisia, o culto da vaidade e a fome de poder.

Tantos lhe chamaram, e lhe chamam, homem contraditório… Tantos o censuravam e o censuram pelo espírito agressivo, mordaz, truculento… A delicadeza e a generosidade de coração quase só as conheceram os amigos, os colaboradores mais estáveis, e os pobres, toda a espécie de pobres.

“Impressiona o rasto que deixa na história. De origem rural, era radicalmente incapaz, por caracter e por deliberação, de se dobrar a quaisquer convenções elitistas, fossem elas de cariz político, eclesiástico ou intelectual. Cativou Cerejeira e Salazar, foi depositário de segredos familiares da alta burguesia de Belém, instruiu sobre S. Tomás os padres de Lisboa, ensinou ao clero do país inteiro o inconformismo do Evangelho (…). Viu a sua contestação, o casamento civil e consequente excomunhão comentados pela imprensa do mundo ocidental. Visceralmente incorruptível, cultivou a liberdade, para si e para os que dele se acercavam, com o olhar direito, a sensibilidade e a áspera frontalidade do aldeão que perscrutou as raízes, as flores e os frutos nas hortas do Vale da Quinta (…)”.

“Muitos textos produzidos por ele não traduzem só um novo paradigma de estar e de lutar na Igreja, mas vão ficar na história como páginas antológicas para uma literatura de indignação”. (Testemunho Aberto – O caso do Padre Felicidade. Lisboa: Multinova, 1999)

Distinções e Prémios

Comendador da Ordem da Liberdade em 10 de junho de 1994;

Prémio Municipal “Júlio de Castilho” de Olisipografia/93 da Câmara Municipal de Lisboa, em 22 de março de 1995;

Diploma de Mérito Municipal (Grau Ouro) da Câmara Municipal de Oeiras, a título póstumo, em 7 de junho de 1999;

Diploma de Mérito Municipal (Grau Prata) da Câmara Municipal de Caldas da Rainha em 15 de maio de 2007.

Toponímia

1. Oeiras, Cruz Quebrada: Rua Padre José da Felicidade Alves;

2. Lisboa, Campolide: Rua José da Felicidade Alves, Olisipógrafo;

3. Amadora, São Brás, Urbanização do Casal da Boba: Praceta Padre José Felicidade Alves;

4. Salir de Matos: Largo P. José da Felicidade Alves.

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(*) em poder de Livros Horizonte.

(**) Editado em 2008.

(***) Obra em fase de publicação.